Uma imagem de Charles Darwin apresenta Maria Cátira Bortolini no WhatsApp. O naturalista, autor da importante obra A origem das espécies, dá a introdução à conversa que teríamos a seguir: genética e evolução biológica. Professora e pesquisadora da UFRGS, doutora em Genética e Biologia Molecular, Cátira liderou um estudo recente envolvendo pesquisadores que são ou foram vinculados ao Programa de Pós-Graduação em Genética e Biologia Molecular (PPGBM/UFRGS).
A pesquisa, aprovada para publicação na conceituada revista de circulação internacional da Sociedade Brasileira de Genética – Genetics and Molecular Biology (GMB), analisou 70 genomas de mamíferos. A ideia era identificar as variações no gene codificador da proteína que o novo coronavírus (SARS-CoV-2) usa para infectar as células do hospedeiro e, assim, ajudar a desvendar o seu papel na infecção de humanos e no desenvolvimento da doença a ele associada, Covid-19.
Os esforços da equipe, que mantinha o diálogo constante por meio das tecnologias digitais, começaram com uma consulta bibliográfica sobre o que estava sendo publicado sobre o genoma do novo coronavírus. A primeira publicação científica no mundo sobre o assunto foi em janeiro deste ano e, logo em seguida, saíram artigos sobre a proteína do hospedeiro, a ACE2. Essa proteína, cuja função está relacionada ao metabolismo do sistema cardiovascular, é usada de maneira oportunista pelo SARS-CoV-2 para infectar a célula. Então, os olhos desse grupo de trabalho se debruçaram sobre a ACE2. “Selecionamos 70 genomas de outros mamíferos, disponíveis em bancos de dados públicos, analisamos o gene que codifica essa proteína, comparamos com as modificações genéticas existentes, fizemos os testes evolutivos para verificar se havia sinal de seleção natural na história desse gene”, elenca Cátira, esclarecendo as etapas de pesquisa.
Duas contribuições relevantes são fruto deste estudo: a primeira delas mostra que o SARS-CoV-2 utiliza porções importantes da proteína ACE2 para entrar na célula, e, como as populações humanas têm os mesmos aminoácidos em pontos chaves do contato entre SARS-CoV-2 e ACE2, todos os humanos são potencialmente suscetíveis a contrair o vírus. O segundo achado aponta que há diferenças genéticas importantes entre as espécies, o que explicaria porque algumas delas são afetadas e outras não.
“Os humanos, como hospedeiros, mostraram-se perfeitos para o vírus, ou seja, o SARS-CoV-2 se apoderou de uma proteína humana que facilitava sua entrada nas células e, pela seleção natural, teve enorme sucesso. Evento que não teria ocorrido, de forma tão fácil em outras espécies, visto as diferenças em ACE2”, explica Bortolini. Por isso que os animais domésticos não teriam tanta facilidade para contrair o vírus como os humanos, por exemplo.
Essa contribuição científica desperta a atenção sobre a evolução do organismo partindo da análise da proteína ACE2, particularmente 30 sítios de contato com o vírus, que são diferentes entre as espécies, mas que não apresentam diferenças entre humanos. De que maneira essa pesquisa pode ajudar? “Nenhuma população humana está livre do vírus, e nós temos visto isso com a pandemia. Porém, o fato de não termos emergência veterinária com os nossos animais domésticos mostra que os cães e os gatos têm diferença com relação a essa proteína (que é a utilizada pelo SARS-CoV-2) ao entrar na célula. Isso pode fazê-los menos suscetíveis à agressão do vírus oportunista. Precisamos olhar para vários aspectos do problema, e o nosso papel com essa publicação é ajudar os outros pesquisadores na construção do conhecimento”, revela Maria Cátira.
Como já dito, a porta de entrada do novo coronavírus é a proteína ACE2. Entretanto a suscetibilidade à infecção bem como o desfecho da doença, embora estejam ligados a questões ambientais conhecidas (isolamento social, acesso a tratamento, etc), também estão relacionados a outras condições, tais como fatores genéticos desconhecidos, a forma como o sistema imunológico individual responde, além das diferentes linhagens do vírus que já circulam. Outro apontamento importante da pesquisadora é que variações em outras partes de ACE2 (que não estão nas regiões da molécula que contém os 30 sítios investigados) também não podem ser descartadas como elementos que influenciam a infecção e desfechos.
Adaptação genética
Uma adaptação bem-sucedida do vírus SARS-CoV-2 é responsável pela atual pandemia de Covid-19. O vírus encontrou na proteína da membrana humana (ACE2) uma porta de entrada para a infecção da célula hospedeira. Um cenário perfeito e a seleção natural transformaram esse novo coronavírus em um especialista em infectar humanos.
Essa história evolutiva mostra um salto entre espécies, algo que aconteceu antes, pelo menos duas outras vezes nos últimos 20 anos. Esse é o terceiro coronavírus que migra de animais para humanos. Em 2002 surgiu o SARS-CoV-1 (SARS vem da sigla em inglês de síndrome respiratória aguda grave), originado de um coronavírus de um pequeno carnívoro existente no Sul da China e Norte da Índia. O SARS-CoV-1 se espalhou por 29 países, infectou 8 mil pessoas e matou cerca de 800. Em 2012, foi identificado o Mers-CoV, causador da síndrome respiratória do Oriente Médio. Esse coronavírus veio de camelos da Arábia Saudita e também chegou a vários países, infectou cerca de 2.500 pessoas e tinha alto índice de mortalidade: 30 a 40%. Agora, estamos diante da pandemia do vírus SARS-CoV-2, que foi transmitido provavelmente pelo morcego e matou mais de 343 mil pessoas no mundo (dados de 26 de maio de 2020 divulgados pela Organização Mundial da Saúde).
As epidemias anteriores tiveram origem em coronavírus que, devido a mutações/recombinações, conseguiram ‘saltar’ de um animal silvestre para seres humanos. Entretanto, nos dois eventos anteriores tivemos uma curva diferente da tragédia que estamos vivenciando hoje. “As mutações são ao acaso e estão ocorrendo a todo tempo nos genomas virais”, então “saltos” entre espécies como estes podem acontecer de maneira recorrente, diz Cátira.
O coronavírus é um vírus com o material genético RNA (ácido ribonucleico: uma molécula cuja principal função é conter a informação para a produção de proteínas) com alta taxa de mutação. Assim, toda molécula que se replica terá erros. Em um dado momento, o vírus mutado pode ‘saltar’ e encontrar outro hospedeiro que tenha o organismo propício para abrigá-lo. “É nesse momento que o novo coronavírus usa a proteína ACE2 dos humanos e se aloja no hospedeiro. Como é uma proteína presente na superfície dos alvéolos e vasos sanguíneos, a função cardiovascular é comprometida”, explica a pesquisadora, que possui ampla experiência em Genética Humana e Evolução Biológica.
Ao encontrar um hospedeiro favorável, o SARS-CoV-2 acessa a célula por meio da ACE2 e se instala e se replica. A partir daí, a seleção natural se encarrega do resto: à medida que o vírus se multiplica ele aumenta a frequência de contágio infectando outros humanos.
“Esse vírus tem alto tropismo para humanos. O nosso estudo mostra que ele poderia infectar, talvez com a mesma eficiência, grandes macacos (chipanzés, gorilas) que têm uma identidade genética parecida com a dos humanos”, elucida a professora, revelando que, como as mutações são aleatórias, nada impede que esse vírus mute novamente e encontre outros organismos propícios a formas derivadas de SARS-CoV-2.
De acordo com a pesquisadora, a partir do momento em que as espécies interagem e convivem, tais ‘saltos’ são inevitáveis. “Na história evolutiva das espécies, isso sempre aconteceu, tanto que existem mecanismos de defesa contra a invasão de vírus em qualquer organismo vivo”. A diferença agora, no caso dos humanos, é que a população é imensa, aglomerada em núcleos urbanos, todos com fácil mobilidade, o que favorece a dispersão de um vírus.
O portal de entrada do novo coronavírus é o mesmo – proteína ACE2, todos os humanos podem contrair, porém a reação de cada indivíduo à doença é particular. “Possuímos sistemas muito eficientes para conter infecções virais, que às vezes dão certo e às vezes não. No caso da pandemia atual, um grupo de pessoas está conseguindo conter o vírus e outros não”, diz Maria Cátira.
Com altos índices de mortalidade, esse vírus usa a ACE2, uma proteína relacionada ao metabolismo cardiovascular que regula a pressão sanguínea. Ao entrar na célula, o SARS-CoV-2 utiliza essa proteína e, ao sair, ele destrói a célula. Nesse processo de “uso” da ACE2, que tem uma função importante no organismo, esta passa a trabalhar para o vírus e não mais para o organismo. Essa ação faz com que o organismo humano deixe de atuar na regulação da pressão sanguínea, por isso as pessoas com problemas cardiovasculares estão no grupo de risco. “Essa proteína, importante em toda a cadeia cardiovascular, está sendo destruída pelo vírus oportunista. Uma reação imunológica muito forte também pode dar problemas, pois pessoas acabam morrendo pela resposta imunológica exacerbada”, explica a professora.
A espécie humana tem convivido com epidemias/pandemias de novos coronavírus em um curto espaço de tempo: são três nos últimos 20 anos. Entretanto, isso não quer dizer que elas não aconteciam antes.
O que mudou com relação às epidemias nos últimos séculos? “Antes, quando éramos sociedades caçadoras e coletoras, os grupos eram pequenos (20 a 30 pessoas) e tinham pouco contato. Assim, quando surgia uma virose, o grupo morria, e o vírus desaparecia porque ele não tinha contato com outros grupos”, explica a pesquisadora.
Quando as epidemias começam a ter importância? Quando a espécie humana fica sedentária por conta da domesticação dos animais e plantas, consequentemente, surgem os primeiros núcleos urbanos que aumentam a concentração de pessoas. “Nesse ponto, as epidemias começam a ser devastadoras. Começamos a ter grupos de 500 pessoas que não precisam mais sair para caçar, até chegarmos os grupos urbanos que temos hoje”, conta Cátira.
Somos uma espécie de primatas com mais de 7,5 bilhões de habitantes no planeta, interconectados de uma maneira nunca vista antes. A grande diferença das epidemias daquela época para a atual é o fato de que, hoje, uma pessoa se desloca da China aos Estados Unidos, por exemplo, em menos de 24 horas. “Essa é a grande diferença: patógenos sempre existiram na história de qualquer espécie, com a nossa não é diferente: quantas vezes coronavírus devem ter infectado populações humanas? Provavelmente desde que a espécie Homo sapiens emergiu.
A infecção por coronavírus, nas proporções e no poder em que estamos vivendo agora, é causada em decorrência desses fatores: grande tamanho populacional, grandes aglomerados urbanos e a capacidade das pessoas se movimentarem que facilita, em muito, a transmissão do vírus”, aponta Maria Cátira.
A pesquisa
Tudo foi feito na frente de um computador. Coleta de dados na internet, debate, escrita, construção de hipóteses, pensamento crítico, análise dos dados, resultados, produção de conhecimento. Uma equipe do Laboratório coordenado pela professora Cátira envolvendo estudantes do Programa de Pós-Graduação em Genética e Biologia Molecular da UFRGS, bem como ex-orientados que hoje se encontram na Universidade de São Paulo e na Universidade de Lausanne (na Suíça) ficaram em contato constante utilizando como material artigos científicos publicados a partir de janeiro deste ano e dados genéticos de bancos públicos.
Em tempo recorde, esse artigo científico foi enviado para a Genetics and Molecular Biology (GMB) em 6 de abril e aceito em 22 do mesmo mês, após revisão rigorosa do editor e de dois avaliadores anônimos. A “força-tarefa” conseguiu, em pouco tempo, comparar 70 espécies de mamíferos placentários e 95% das referências utilizadas no artigo é de 2020. Com 20 anos de experiência na coordenação do Laboratório de Evolução Humana e Molecular do Departamento de Genética da UFRGS, Maria Cátira Bortolini organizou com maestria a realização deste estudo.
Ela relata que “quando a Universidade fechou por conta da pandemia, pensei que poderíamos ajudar de alguma forma, já que temos uma longa trajetória de estudos evolutivos. Assim, debatemos sobre as várias questões do ponto de vista evolutivo e começamos a nos perguntar sobre a história evolutiva do vírus e o seu papel na infecção de humanos”.
Em quarentena, das suas casas, os pesquisadores iniciaram o duro trabalho de varredura de uma avalanche de dados e informações publicadas a cada instante sobre o SARS-CoV-2 (vírus) e a Covid-19 (doença). “Nunca houve um tema que promovesse tanto conhecimento científico tão rápido. A nossa abordagem é inédita, pois a partir da revisão e do banco de dados público geramos dados originais. Não existia nenhum artigo na literatura com uma abordagem que comparasse 70 genomas e mostrasse como esse gene, codificador de ACE2, está evoluindo”, aponta a professora.
Para ela, quarentena não é ficar em casa sem trabalhar. “Somos privilegiados em poder trabalhar em uma instituição pública, poder ficar em casa cumprindo o nosso papel social do isolamento e, ainda, recebendo o nosso salário em dia. Então, podemos fazer muita coisa mesmo que o Laboratório na UFRGS esteja fechado no momento. O fato de estarmos em casa recebendo dinheiro público nos dá uma dupla responsabilidade”.
Papel da Universidade Pública no Brasil
Pesquisas inéditas, relevantes e confiáveis são fundamentais neste momento de pandemia. Informações falsas, desencontradas e “achismos” permeiam a internet. A ciência assume, mais do que nunca, um papel primordial no enfrentamento do novo coronavírus.
No Brasil, são as instituições de ensino públicas que têm liderado as pesquisas sobre SARS-CoV-2. Na UFRGS não é diferente: os pesquisadores adaptaram as suas linhas de pesquisa para investigar esse novo vírus. “Nós paramos de fazer as pesquisas que estávamos fazendo para focar nisso e temos tantos outros colegas fazendo o mesmo. É um esforço mundial, e eu vejo que a UFRGS está contribuindo na medida em que os seus especialistas usam o seu conhecimento para ajudar a comunidade internacional e nacional a construir um conjunto robusto de dados. Isso vai nos ajudar a entender a história evolutiva do vírus, como ele tem esse tropismo para os humanos, e ajudar a combater a invasão provocada por esse coronavírus oportunista”.
A universidade pública no Brasil tem um papel essencial na produção de conhecimento científico nacional. A ciência passa a ser valorizada, mas não tem resposta para tudo. O que preconiza, porém, está embasado em evidências, replicação e resultados, fatores que levam tempo para estarem bem fundamentados. “Agora a ciência passa a ter valor, e querem uma resposta para ontem. Se você quer resposta para tudo, não vai encontrar na ciência, mas aquilo que a ciência responde tem muito mais chance de estar certo justamente por conta do método, de dados, evidências e estatística. A gente acerta muito mais”, enaltece Cátira.
Explicando
O papel fisiológico do receptor ACE2: A enzima conversora da angiotensina 2 (ACE2) é componente do sistema renina angiotensina aldosterona. É responsável pela conversão da angiotensina II em angiotensina 1-7 (Ang 1-7). Sua importância médica reside no fato de estar relacionada a patogênese de várias desordens cardiovasculares, como por exemplo, hipertensão, arteriosclerose e infarto do miocárdio. A enzima conversora da angiotensina (ACE) é produzida pelos vasos pulmonares e age sobre a angiotensina-1, transformando-a em angiotensina-2. A proteína ACE2 atua como um receptor do vírus SARS-CoV2.
Sequenciamento genético: identificar cada uma das unidades do gene (nucleotídeos). É a partir das unidades do gene que conseguimos identificar as unidades da proteína (aminoácidos). Cada ser vivo tem um genoma único, mas com identidades básicas com indivíduos de sua espécie (no caso, Homo sapiens), de seu gênero (Homo), família (Hominidea), ordem (Primates), etc.
Fonte: UFRGS
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