“O trabalho infantil prejudica o desenvolvimento das crianças. Neste momento de crise, devemos estar atentos ao aumento dos casos”, avalia a juíza Aline Fagundes

O dia 12 de junho é o Dia Mundial de Combate ao Trabalho Infantil. O enfrentamento dessa violação dos direitos de crianças e adolescentes ainda é um grande desafio em nosso país.

No Brasil, conforme dados do IBGE, cerca de 1,9 milhão de pessoas de 5 a 17 anos estavam em situação de trabalho infantil em 2022, o que representa quase 5% da população na faixa etária. Desse total, 756 mil desempenhavam atividades elencadas na Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil, que envolvem graves riscos de acidentes e danos à saúde.

Na entrevista a seguir, a gestora regional do Programa de Combate ao Trabalho Infantil e de Estímulo à Aprendizagem do TRT-RS, juíza Aline Doral Stefani Fagundes, fala sobre as causas desse problema, seu enfrentamento e os impactos para as vítimas.

Como se caracteriza o trabalho infantil?

Temos a definição objetiva na Constituição Federal. Ela proíbe o trabalho para menores de 16 anos, salvo na condição de aprendiz, a partir dos 14 anos. Também é proibido o trabalho noturno, perigoso ou insalubre aos menores de 18 anos.

O trabalho infantil impede que crianças e adolescentes tenham acesso a elementos essenciais para seu desenvolvimento, como a educação, o lazer, a saúde e o bem-estar. Por isso ele deve ser combatido.

Quais são os impactos para as vítimas?

Além dos prejuízos para o desenvolvimento, pode haver impactos imediatos, quando as condições de trabalho trazem riscos para saúde física ou mental. Também há o prejuízo futuro, porque o trabalho precoce tende a manter a criança em condições de pobreza na vida adulta. Quanto mais cedo ela começa a trabalhar, menor é a chance de aumentar seu nível de escolaridade.

Por que o Brasil ainda apresenta estatísticas elevadas de trabalho precoce?

A primeira causa é a pobreza. Não é possível tirar a criança de uma situação dessas se não temos alternativas para oferecer. A pobreza e o trabalho infantil precisam ser combatidos conjuntamente.

Outro elemento que contribui é a tradição cultural, a falsa ideia de que é positivo começar a trabalhar cedo. Nesse aspecto, precisamos de mais conscientização, porque é um pensamento equivocado. O trabalho precoce atrapalha o desenvolvimento e perpetua a pobreza.

A baixa escolaridade também é apontada como uma das causas do trabalho infantil. Mas eu diria que ela é causa e consequência.

A Auditoria Fiscal do Trabalho afastou 2.564 crianças e adolescentes da situação de trabalho infantil em 2023. O Rio Grande do Sul ficou em quinto lugar no ranking nacional, com 197 resgatados. No atual contexto de crise, em razão das enchentes, há risco de aumento nos casos?

Sim, porque as condições para que eles ocorram tendem a se intensificar. Mais pobreza aumenta a pressão na busca pela sobrevivência. A tragédia acentuou o desemprego, fechou escolas e interrompeu a atuação de serviços assistenciais. Essas alterações podem levar à necessidade de as crianças contribuírem para a renda familiar. A proteção da infância é uma preocupação constante das nossas instituições. Além do mais, é importante zelar pela manutenção dos contratos de aprendizagem neste momento de crise.

Qual a relação da aprendizagem com o combate ao trabalho infantil?

Quando a legislação diz que é possível trabalhar, a partir dos 14 anos, na condição de aprendiz, a mensagem é a de que o ingresso no mercado de trabalho deve ocorrer de forma segura e saudável. Na aprendizagem, o jovem está mais protegido e tem a oportunidade de estar mais preparado. É um contrato que combina educação e qualificação no trabalho.

O tema da campanha do 12 de junho neste ano é “O trabalho infantil que ninguém vê”. Ainda temos casos que ficam escondidos?

Muitos ficam escondidos e muitos não percebemos porque já fazem parte do nosso contexto cultural. Nossos olhos já estão acostumados com a criança vendendo balas na sinaleira, por exemplo, ela já faz parte da paisagem.

O trabalho doméstico também costuma ser invisibilizado. A criança fica isolada em um ambiente, sujeita a explorações de diversas naturezas. O tema do trabalho doméstico é confundido por algumas pessoas com situações de crianças que aprendem a participar das tarefas coletivas da casa, o que inclusive poderia ser lúdico. Mas não é disso que se trata. Estou me referindo às crianças que, na própria casa ou para terceiros, assumem uma responsabilidade incompatível com a sua maturidade física e mental. Isso é nocivo porque atrapalha o desenvolvimento e pode trazer consequências negativas para a saúde. O Brasil foi o primeiro país no mundo a incluir o trabalho doméstico na Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil.

A grande maioria (89%) das vítimas resgatadas pela Auditoria Fiscal do Trabalho em 2023 se enquadrava na Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil. Como essa lista é formada?

A lista teve início com a Convenção 182 da Organização Internacional do Trabalho, que elencou entre as piores formas o trabalho escravo, o uso de crianças em conflitos armados, a exploração sexual, o tráfico de drogas e outras atividades ilícitas, e as atividades perigosas e insalubres. Cada país que ratifica a convenção, por meio de decretos, pode adicionar complementos. O Brasil adicionou várias formas, inclusive o trabalho doméstico. No total, são 93 atividades. Elas estão relacionadas no Decreto 6481/2008.

Entre 2012 e 2022, foram registrados mais de 21 mil acidentes de trabalho com vítimas crianças e adolescentes no Brasil. No trabalho precoce há mais exposição a riscos?

Sim, as crianças e os adolescentes ficam mais expostos a riscos por vários fatores. O desenvolvimento motor não está completo e sequer há maturidade para a percepção de risco que uma pessoa adulta teria. Por essa razão muitas atividades associadas ao perigo aparecem na lista das piores formas.

Qual o papel do Judiciário no enfrentamento deste problema?

O Poder Judiciário mudou sua forma de atuação. Nós continuamos decidindo nos processos que são ajuizados, como nas ações civis do Ministério Público do Trabalho. Mas a figura clássica do juiz que só espera a demanda está mudando. A Justiça do Trabalho tem uma participação ativa por meio das campanhas do Programa de Combate ao Trabalho Infantil e de Estímulo à Aprendizagem, que envolvem todas as cortes trabalhistas do país. A comunidade-jurídico trabalhista também desenvolve um programa de aprendizagem, em parceria com o Projeto Pescar, que oferece formação socioprofissional a jovens em situação de vulnerabilidade social. Além disso, a Ouvidoria do TRT-RS é um dos canais disponíveis para receber denúncias de trabalho infantil.

Qual é o principal desafio para a erradicação do trabalho infantil no Brasil?

Estamos muito longe ainda de considerar uma erradicação. Mas mesmo que consigamos números positivos, nunca poderemos baixar a guarda. A atenção precisa ser permanente, porque onde há pobreza tende a haver trabalho infantil. Nossas ações de combate devem estar sempre associadas a suas causas, como o combate à miserabilidade, a oferta de alternativas saudáveis, e campanhas de conscientização que afastem a cultura que legitima o trabalho infantil.

Não conseguiremos combater o trabalho infantil olhando apenas pelo buraco da fechadura, porque é um problema complexo. Deve ser uma luta multidisciplinar, multifacetada e amplíssima para funcionar.

Fonte: texto de Guilherme Villa Verde (Secom/TRT-4), foto do arquivo de Aline Fagundes.
PG
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